Linguagem neutra: ‘sou a favor, mas sou contra’, parece dizer articulista

REFLEXÕES. Até pouco tempo atrás, ninguém podia criticar a dita “linguagem neutra” sem ser acusado de “fascista”, “homofóbico”, “transfóbico” ou simplesmente “bolsonarista”, o que sintetiza todos os outros termos. Até mesmo alguns professores universitários e pesquisadores da área da linguística deram um jeito de justificar a utilidade social ou a propriedade de formas como “elu” ou “todes”. No senso comum, a desbotada explicação de que a língua muda (muda mesmo, é claro) servia para explicar o “fenômeno”. Foi grande, portanto, a minha surpresa ao ver uma articulista, sempre muito antenada com as tendências da opinião do jornal em que escreve, defender a decisão do presidente Lula de proibir esse tipo de linguagem em documentos oficiais.   

É claro que a nossa amiga fez interessantes malabarismos para não ofender a população “não binária”, que, penso eu, seja aquela a quem se destinaria uma linguagem que abolisse a marcação dos gêneros masculino e feminino. No artigo, ela opôs uma suposta sofisticação da linguagem neutra ao “básico”, que seria a língua portuguesa tal qual a conhecemos. Diz ela: “O Brasil tem problemas reais de alfabetização. Três em cada dez brasileiros adultos são analfabetos funcionais; gente que até lê, mas tem dificuldade para compreender um texto simples e usar a informação na vida prática. Para essa maioria, não faz sentido o Estado sofisticar a comunicação”.

Tudo certo. A articulista se saiu bem, tratando a linguagem neutra como algo superior, o suprassumo da sofisticação, que, por isso mesmo, não estaria ao alcance de nossa pobre população semialfabetizada, a quem restaria contentar-se com a boa e velha língua portuguesa de dois gêneros. Está certo que essa população humilde à qual ela se refere não lê o jornal onde ela escreve, portanto dessa gente ela pode falar com distanciamento, sem fazer média. Até aí, tudo dentro da expectativa.

A levar a sério os argumentos da articulista, porém, claro fica que “linguagem neutra” não faz parte da agenda da população como um todo, já que a maioria nem sequer entende o que seja isso, muito menos o seu propósito. Sendo assim, cabe perguntar se, entre essas pessoas pouco letradas, não há “não binários” sedentos de representatividade gramatical. Como a própria argumentação deixa explícito, “esse tipo de pauta não dá votos”. Por que será? A pergunta é retórica.

Juntando uma coisa com outra coisa, a articulista deixa claro o que, embora óbvio, era tabu: “linguagem neutra” não é uma mudança natural da língua, impulsionada pelo uso e pelas tensões linguísticas e extralinguísticas. É, no máximo, uma manifestação estética de um grupo – e como tal totalmente válida. Vamos lembrar que a poesia futurista, no começo do século XX, aboliu a pontuação como forma de representar a velocidade da vida moderna. Ninguém pleiteou, porém, que a pontuação fosse abolida dos textos escritos de modo geral ou, menos ainda, que as pessoas passassem a falar sem pausas.

A diferença entre os futuristas e os ativistas da linguagem neutra, quanto a esse aspecto, é que os primeiros eram, de fato, artistas e, conscientemente, usavam a linguagem como recurso estético, enquanto os últimos se reivindicam como lideranças de um movimento social, cuja ascensão se daria pela transformação da língua segundo parâmetros criados não se sabe exatamente por quem. Seu modus operandi é forçar uma espécie de conversão, ou seja, adotar essas idiossincrasias linguísticas seria uma forma de adesão ao movimento e, ato contínuo, recusar-se a adotá-las seria posicionar-se contrariamente à inclusão social desse grupo. Embora critiquem o binarismo de gênero da língua, seu raciocínio é binário e não admite nuances.  E é nesse ponto que criam cisão.

Por mais que se angarie simpatia pela causa LGBTQIA+ entre a população, é antinatural mudar as categorias gramaticais da língua. Estamos diante de um bem coletivo, cujo funcionamento depende do acordo tácito do conjunto dos falantes e, por menos que se goste, daquilo que se aprende com as gerações passadas. Criar palavras é simples e corriqueiro, é sempre algo que se pode absorver rapidamente, mas não se mudam categorias fixas. Um exemplo ajuda a entender: criam-se substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, mas não se criam preposições e conjunções, pois estas pertencem a um grupo fechado. O mesmo vale para as categorias de gênero e número e para as desinências verbais.

Mudanças radicais, quando ocorrem, levam ao desaparecimento de uma língua e ao surgimento de outras, como ocorreu com o latim, que deu origem ao português e a outras línguas. O latim sobrevive como língua oficial do Vaticano e continua a ser estudado por permitir o acesso a obras clássicas e a documentos históricos, mas deixou de ser uma língua funcional.   

O fato é que não há como obrigar a população a adotar um dialeto artificial. Mutatis mutandis, é como se o esperanto fosse imposto à população mundial no lugar das línguas naturais. O esperanto ganhou considerável adesão, mas seu objetivo de facilitar a comunicação entre os povos parece se cumprir com o uso extensivo do inglês. A solução para o problema da comunicação interpovos veio “naturalmente” da expansão do inglês, que, não por acaso, é a língua dos Estados Unidos da América, a potência imperialista mais influente do planeta.

A linguagem neutra tem um objetivo “mais ambicioso”, pois no seu horizonte está a abolição da distinção de gêneros entre seres humanos, que são biologicamente distintos, o que é um dado concreto. É certo que poderíamos, quem sabe, evoluir para uma percepção hipercultural da realidade, na qual nossa natureza biológica se anulasse – e, num exercício de imaginação, deixariam de existir homens e mulheres, passando o mundo a ser habitado apenas por pessoas sem distinção sexual. A realidade teria de mudar antes da linguagem – não o contrário, como parecem querer os ativistas.

Caso essa drástica transformação de percepção ocorresse, criando uma nova realidade sensível, na qual não veríamos mais homens e mulheres, o mais provável é que o gênero feminino, que é a forma marcada, desaparecesse, ficando o masculino como forma única, não marcada, que deixaria de ser percebido como “masculino”. Nem por hipótese surgiria essa língua inventada pelos grupos ativistas. A língua muda sim, a língua se transforma, mas a partir do que ela é, de seus elementos característicos, não da simples imaginação de alguém. E isso acontece porque a língua não pertence a um ou outro grupo, mas sim a todos os falantes ao mesmo tempo.

No português, o gênero dos substantivos comuns é arbitrário (a cadeira, o armário); o que foi o gênero neutro no latim se fundiu com o masculino por semelhança formal, num processo de simplificação. É fantasiosa a ideia de que a língua seja “machista” por usar o masculino para se referir a grupos mistos. Aliás, nos anos 1980 e 1990, essa história de língua machista era uma piada que professores de cursinho usavam para animar as aulas dadas a grandes plateias. Era sempre uma brincadeira que rendia risadas e ajudava a memorizar regras de concordância, além de tornar menos áridas as aulas de gramática.

Em suma, o único problema da “linguagem neutra” é reivindicar adesão por conversão à causa. Não vai acontecer, porque a língua é um legado de nossos antepassados, que vamos moldando às nossas necessidades, mas sem destruir o que veio antes. É esse, aliás, o sentido da “tradição”, aquilo que se passa ao outro – e que mantém o vínculo histórico com nossas raízes, criando nossa identidade cultural. Não aderir à “linguagem neutra” não significa não reconhecer a legitimidade das questões caras à população LGBTQIA+. É que não dá mesmo para fazer isso.

Todo o mundo sabe disso, inclusive a turma que dá seu bom-dia a “todos, todas e todes” e depois continua falando normalmente, no sistema bigênero do português. Alguns dão a mesma desculpa que a nossa colunista deu no início de seu artigo, ao dizer que ela confunde até a grafia de “exceção”, às vezes escrevendo a palavra com dois “ss”, e que – veja só a modéstia! – tem dificuldade para aprender essa linguagem tão sofisticada.  

É, aliás, a nossa insuspeita articulista quem diz que “quem leva essa pauta a sério sabe que a resposta está em políticas públicas, não em malabarismo gramatical”. E continua: “Enfrentar a violência contra esses grupos passa por protocolos de acolhimento, formação continuada de professores para lidar com diversidade em sala de aula, campanhas de combate à discriminação e políticas de emprego. Não é trocar vogais no Diário Oficial nem na comunicação interna das empresas”.

As palavras são dela, não da professora de português – e ela assegura que defende a agenda dos LGBTQIA+, seus amigos (ou, dependendo da circunstância, “amigues”). Em outros tempos, talvez fosse até “cancelada” por causa de colocações como essas, que obviamente não têm nada de mais, mas, como todos os que se atrevem a criticar os métodos do ativismo identitário, ela se cerca de estratagemas argumentativos para dizer da linguagem neutra que, sim, é a favor…, mas que, é claro, é contra.

Sabemos também que, embora diga apoiar a decisão do presidente Lula (“Lule está certe“, diz ela em “neutrês”), a articulista está a léguas de distância da possibilidade de apoiar politicamente Lula. A valentia no enfrentamento, ainda que cauteloso, da linguagem neutra parece ter respaldo em outros setores (poderosos) da sociedade. Que seja. Seu mérito é abrir espaço para uma discussão mais racional sobre o problema, sem interdições de cunho político-moral.

A arte de esgrimir argumentos

GRAMATICAIS. A esgrima, embora tenha raízes em treinamentos militares no Antigo Egito e tenha sido praticada pelos gladiadores na Roma Antiga, ganhou, no século XVI, entre os nobres europeus, o status de uma arte refinada, tendo-se tornado um símbolo de elegância. Desde o final do século XIX, passou a integrar as modalidades olímpicas. Nosso tema hoje não é propriamente a esgrima, mas, como veremos, tem algo a ver com essa bela arte.     

O leitor atento já terá ouvido a metáfora “esgrimir argumentos”, em que a destreza e o raciocínio rápido do esgrimista, cuja arte está em tocar o adversário e não ser tocado por ele, são associados à capacidade de manipular argumentos com esses mesmos objetivos. Pois bem. Foi com essa intenção que um articulista de jornal escreveu o seguinte trecho:

Esgrimando palavras vazias sobre direitos fundamentais, tinham como agenda principal um projeto de anistia para impedir que o ex-presidente vá parar atrás das grades. Incapazes de reconhecer e aceitar as regras do jogo democrático, recorreram a um expediente típico das ditaduras: a interdição do Congresso.”

O editorialista usou a forma “esgrimando” onde se esperaria “esgrimindo”, uma vez que o verbo é de terceira conjugação (esgrimir, como partir, sair, agir, conseguir, espargir etc.). Embora a forma “esgrimar” tenha existido em um passado distante, nada justificaria fazer uso de um arcaísmo em texto jornalístico.

Arcaísmos são o que o próprio nome sugere, ou seja, termos que pertencem a outra fase da língua. A maior parte dos dicionários nem mesmo registra a forma. No Houaiss, existe o registro, que vem seguido da abreviatura “ant.” (antigo). Bons dicionários mantêm o registro de formas arcaizadas para orientar a leitura de textos antigos. O fato de estar no dicionário, porém, não quer dizer que a palavra deva saltar de lá para uma página sem nenhum critério.

O mais provável no caso em questão é ter havido confusão com o substantivo “esgrima”, terminado com a vogal temática “a”. Contribui para o erro gramatical o fato de a primeira conjugação (verbos terminados em “-ar”) ser a mais fértil, a única em que novos verbos surgem no português atual. Em outras palavras, na dúvida, a pessoa acaba usando a terminação “-ar”.   

Ainda que se possam entender os caminhos que levaram ao equívoco, é importante fazer a correção gramatical. De resto, o redator poderia ter usado “manipulando palavras vazias”, ua expressão mais simples.  A imagem da esgrima, no entanto, aciona a ideia de disputa, que, de fato, vem animando o cenário político.

Vejamos a correção:

Esgrimindo palavras vazias sobre direitos fundamentais, tinham como agenda principal um projeto de anistia para impedir que o ex-presidente vá parar atrás das grades. Incapazes de reconhecer e aceitar as regras do jogo democrático, recorreram a um expediente típico das ditaduras: a interdição do Congresso.

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Manchete com duplo sentido

NA IMPRENSA. Nosso leitor Rafael Salles nos trouxe uma contribuição muito interessante. Lendo um importante jornal de economia, ele encontrou uma manchete ambígua e logo se lembrou de compartilhá-la com os leitores do Português Claro.

A frase com duplo sentido servia de título para uma matéria publicada no contexto das tentativas de negociação do governo suíço com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em torno de tarifas de importação. O fato noticiado é que a Suíça saiu de mãos vazias da mesa de negociações, mas o título permite interpretação diferente. Vejamos:

“Representantes da Suíça deixam EUA de mãos vazias após negociações de última hora”

Sem conhecer o contexto, como interpretaríamos a frase? A Suíça deixou de mãos vazias os Estados Unidos ou a própria Suíça é que saiu de mãos vazias? Impossível saber só pelo título. Vamos ver por que isso acontece.

A escolha do verbo “deixar”, usado no sentido de “sair de algum lugar” (por exemplo: “Representantes da Suíça deixaram os Estados Unidos na noite de quinta-feira”), é que permite o duplo sentido. Esse verbo é também transobjetivo, sendo construído com objeto direto e predicativo do objeto (por exemplo: “Ele me deixou de mãos vazias”, em que “me” é o objeto direto e “de mãos vazias” é um predicativo desse objeto direto). Nessa construção, “deixar” tem valor causal. Trata-se, portanto, de dois usos do verbo “deixar”: (i) sair ou abandonar e (ii) verbo auxiliar causativo.

Na prática, o título acima pode dar a entender que os Estados Unidos ficaram de mãos vazias porque os representantes suíços fizeram que isso ocorresse. A intenção, no entanto, era dizer que os representantes suíços saíram de mãos vazias da reunião nos Estados Unidos.

Para evitar o duplo sentido, poderia o redator optar por diferentes caminhos. Vejamos duas sugestões:

  • usar o verbo “sair”:

Representantes da Suíça saem dos EUA de mãos vazias após negociações de última hora

Explicação: “sair” não é transobjetivo, portanto o predicativo (“de mãos vazias”) só pode recair sobre o sujeito (“representantes da Suíça).

  • mudar a posição do predicativo:

De mãos vazias, representantes da Suíça deixam EUA após negociações de última hora

Explicação: o predicativo (“de mãos vazias”), dada a posição anterior ao sujeito (“representantes da Suíça”), dificilmente seria lido como predicativo do objeto.

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A Justiça é cega

GRAMATICAIS. REFLEXÕES. Todos conhecemos a representação da Justiça como uma mulher de olhos vendados. A venda nos olhos simboliza a imparcialidade, significando que, para haver justiça, o julgamento deve ser feito apenas com base nos fatos e nas leis, à luz da razão, sem influência de emoções, preconceitos ou quaisquer outros interesses. Há alguns dias, o juiz Alexandre de Moraes, do STF, em uma decisão cujo texto veio a público, fez menção a essa imagem de forma inusitada. Foi, porém, por causa de um deslize gramatical que o fato chamou a atenção nas redes sociais.

Ao responder à defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, o ministro escreveu na peça processual a seguinte frase: “A JUSTIÇA É CEGA MAIS NÃO É TOLA!!!!!”, exatamente assim, com letras maiúsculas, pontos de exclamação e “mais” no lugar de “mas”. A leitura do documento revela vários outros erros gramaticais (de crase, concordância, pontuação etc.), que nos eximimos de comentar agora, mas aos quais voltaremos.

Corrigida, a frase que Moraes diz repetir com certa frequência é esta: “A Justiça é cega, mas não é tola”. A conjunção “mas”, que introduz ideia de oposição, vem depois de uma vírgula e não se confunde com a palavra “mais”, que pode ser um pronome indefinido (“mais dinheiro”) ou um advérbio de intensidade (“mais tarde”). Quem, porventura, tenha essa dúvida pode aproveitar a repercussão do caso para memorizar as grafias corretas.

De resto, a frase chama a atenção por tomar a cegueira da Justiça como uma falha ou uma deficiência, não como uma escolha e, a bem da verdade, como uma virtude, que é o significado simbólico da imagem. Ao dizer “cega, mas não tola”, ele pressupõe que a “cegueira” implique, supostamente, algum grau de ingenuidade. Esse é o sentido metafórico de “cego”, por exemplo, no dito popular “o amor é cego”, em que a cegueira é a incapacidade de enxergar os defeitos do outro.

Para entender a ideia de pressuposto, estudada pela pragmática, vejamos outros exemplos. Ao dizermos que alguém deixou de fumar, estamos pressupondo que essa pessoa era fumante. Quem diga algo como “a moça é loira, mas é inteligente”, tem como pressuposto que moças loiras não são inteligentes, uma vez que a conjunção “mas” indica oposição ou quebra de expectativa.

Na frase “a Justiça é cega, mas não é tola”, o pressuposto é que ser cego, em alguma medida, é ser tolo, como o é o apaixonado. O ministro se valeu de um jogo de palavras, em que o adjetivo “cego” é tomado metaforicamente como incapaz de ver, para dizer que a Justiça, mesmo assim, a despeito dessa falha, está vendo todas as supostas artimanhas do réu, que estaria tentando burlar as suas determinações.

Quem está “vendo tudo”, no entanto, é ele próprio, o juiz. A Justiça é (ou deveria ser) cega mesmo, entendida a sua cegueira como uma virtude necessária ao seu propósito.  

O sistema do plural – e ‘tals’

GRAMATICAIS. ORTOGRAFIA. É raro que, na hora de escrever, se pense muito na ortografia de uma palavra, a menos que se tenha dúvida recorrente sobre ela. Em geral, a forma da palavra é fixada na memória e passa a ser registrada automaticamente. Em alguns casos, como sabemos, a pessoa fixa a forma incorreta, mas aí são outros quinhentos. Quantas vezes temos visto nas redes sociais de gente muito bem escolarizada grafias como “excessão” (inexistente) no lugar de “exceção” e “estância” no lugar de “instância” (coisas diferentes)?

Pois bem. Os casos de hoje são, mais uma vez, extraídos de veículos da imprensa, agora selecionados por um motivo especial. Uma pessoa que escreva “excessão”, embora esteja cometendo um erro de grafia, não está infringindo, digamos, o espírito da língua ou do sistema ortográfico, apenas estará usando “ss” onde deveria ter usado “ç”. Fato diferente se dá nos casos abaixo:

“Há 15 anos sofria dos mals de Alzheimer e Parkinson. Morreu no sábado, aos 84 anos.”

“O presidente segue sem ser incomodado, e ouve ‘sims’ de seus generais para instrumentalização da Defesa, descredibilização das urnas eletrônicas e desfile de tanques enfumaçados em frente ao Planalto.”

Não é próprio da língua portuguesa o “s” depois do “l” ou depois do “m”. Falantes do português não escrveriam “barrils” de chope ou “garagems”. O plural de palavras terminadas em “l” se faz com a substituição dessa letra por “-is” ou “-eis”, a depender do caso. Oxítonas ganham a terminação “-is” (funil/ funis, barril/barris, cantil/cantis); paroxítonas pedem “-eis” (hábil/ hábeis, contábil/ contábeis, portátil/ portáteis).

Há palavras terminadas em “l” que têm mais de uma pronúncia, o que se reflete na acentuação e na flexão de número. É esse o caso de “réptil” (paroxítona) ou “reptil” (oxítona) e de “projétil” (paroxítona) ou “projetil” (oxítona), cujos plurais são, respectivamente, “répteis”, “reptis”, “projéteis” e “projetis”.

Ocorrem ainda os monossílabos “mel”, que aceita as formas “méis” e “meles”, “cal”, que admite “cais” e “cales”, e“mal”, que requer o acréscimo de “-es” (males).

Não existe no sistema ortográfico do português o plural com acréscimo de “s” a “l”, como se vê no primeiro dos trechos acima. É claro que o plural de “mau”, este sim, é feito com o acréscimo do “s” (como ocorre com “sarau” e “degrau”). “Maus” existe, mas “mals” não!

Há, porém, o caso do plural de “gol” no português do Brasil, que constitui honrosa exceção. O aportuguesamento do inglês “goal”, em Portugal, resultou na forma “golo”, cujo plural é, naturalmente, “golos”, mas, no Brasil, resultou na forma “gol”, cujo plural é… “gols”. Com a aplicação da regra, teríamos “gois” ou “goles”, formas registradas em nossos dicionários, mas rechaçadas pelo uso.

“Gols”, portanto, deve ser tratado como exceção, não como regra. O plural de “mal” é “males”, o de “sol” é “sóis” (“Porém já cinco sóis eram passados/ Que dali nos partíramos, cortando/ Os mares nunca d’outrem navegados“, nos famosos versos de Camões) e assim por diante.

Existe na gíria o uso da forma “tals”, que já chegou à imprensa, como se vê abaixo, mas totalmente fora do sistema ortográfico do português.

A ‘bênção gay’, autorizada pelo papa Francisco, na Igreja Católica, pode até ter ares de mudança diante de princípios milenares que precisam de amadurecimento histórico e tals, mas é uma migalha de deixar a hóstia envergonhada. Aceita-se até você ter lá suas questões de gênero, mas as manifestações dela precisam ser bem regradas.”

Nesse caso, porém, é nítida a intenção do autor de reproduzir o registro oral de um grupo a que pertence. Trata-se, portanto, de uma escolha estilisticamente motivada. Em tempos de redes sociais, nas quais a escrita é livre, surgem grafias alternativas, como essa, que dão ao texto certo tom de informalidade. O importante é fazer as escolhas linguísticas conscientemente, sabendo o efeito que pretende produzir no leitor.

Quanto ao segundo fragmento, o redator, ao pluralizar o advérbio “sim”, então tomado como um substantivo, apenas acrescentou um “s” à terminação “m”. Como sabemos, palavras terminadas em “-m” fazem o plural com “-ns” (homem – homens, capim – capins, acordeom – acordeons). O plural de “não” é “nãos”, mas o de “sim” é “sins”. Assim:

Há 15 anos sofria dos males de Alzheimer e Parkinson. Morreu no sábado, aos 84 anos.

Hoje, os médicos preferem o uso do termo “doença” no lugar de “mal” (doença de Alzheimer e doença de Parkinson).

O presidente segue sem ser incomodado, e ouve“sins” de seus generais para instrumentalização da Defesa, descredibilização das urnas eletrônicas e desfile de tanques enfumaçados em frente ao Planalto.

Outros casos, mais frequentes que esses dois, mas igualmente estranhos à convenção ortográfica do português, são “transsexual” e “hiperrealista”. Será que você já viu essas grafias?

“Transexual” se escreve com apenas um “s” porque o dígrafo “ss” só ocorre entre duas vogais. A duplicação do “s” entre duas vogais serve para evitar que seja pronunciado como “z”. Compare: “asa” (som de “z”) e “assa” (som de “s”), “posa” (som de “z”) e “possa” (som de “s”). Não existe, no português, “ss” depois de consoante.

“Hiper-realista” é a grafia correta dessa palavra. Nesse caso, o problema está na própria pronúncia. Se juntarmos o prefixo terminado em “-r” (“hiper-“) ao termo iniciado em “r”, grafando “hiperrealista”, leremos a sequência “-erre-” como em “emperre”. Esse erro veio depois do Acordo Ortográfico 1990, quando muitos prefixos se juntaram sem hífen aos radicais. A regra básica do hífen, no entanto, é usá-lo para separar letras iguais (a última do prefixo e a primeira do termo subsequente). Assim: auto-ônibus, entre-eixo, anti-inflação, hiper-realista etc.

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‘Frauda’ [sic] e o plural de ‘sarau’

ORTOGRAFIA. GRAMATICAIS. No português do Brasil, é muito comum a pronúncia do “l” como “u”, sem nenhuma diferença. Aliás, isso está na raiz da conhecida confusão entre “mal” e “mau”, os dois regularmente pronunciados da mesma forma.

No caso desse par, a dica de sempre é distinguir os termos pelos seus antônimos: “mal” é o oposto de “bem”, “mau” é o oposto de “bom”. Na maior parte dos casos, o truque dá certo. Basta fazer o teste: mau vizinho/ bom vizinho, cozinha mal/ cozinha bem. Em termos gramaticais, grosso modo, “mal” é advérbio (modifica verbos) e “mau” é adjetivo (caracteriza substantivos). O tema pode ser aprofundado, mas não vamos fazer isso hoje.

Agora, vamos examinar dois fragmentos de textos publicados em jornais de grande circulação. Nos dois, temos questões de grafia ligadas às letras “u” e “l”. Vejamos:

“No dia seguinte, voltou à UPA se queixando de dores e mais uma vez [foi] liberado. Três dias depois, foi internado e encaminhado à cirurgia de emergência. Por intercorrências da operação, passou por outras duas cirurgias. Nesse período emagreceu 15 quilos, precisou usar fraudas, ficou impossibilitado de se locomover e de trabalhar e ficou sem fonte de renda por vários meses, sobrevivendo com a ajuda de familiares.”

“Se Barroso está mesmo bem-intencionado e quer prestar um serviço à República – e não há razões para duvidar disso –, melhor faria se trocasse os sarais eivados de conflitos de interesse pelo silêncio institucional, e a afetação iluminista pelo respeito aos limites do cargo.”

No primeiro trecho, o redator relatava a história de um paciente que moveu ação judicial contra hospital público por negligência no atendimento. O texto, reproduzido em um importante jornal, é praticamente idêntico ao publicado no site do STJ-SP, no qual também se registra o termo “fraudas” no lugar de “fraldas”. A palavra “fraudas” existe, mas como forma verbal de segunda pessoa do singular do verbo “fraudar” no presente do indicativo (tu fraudas).

No segundo, temos um erro na pluralização de “sarau”. O problema, naturalmente, está ligado à pronúncia do “l” e do “u”, idêntica na maior parte do país, à exceção talvez de algumas regiões do sul. Do ponto de vista da ortografia, o plural de palavras terminadas em “u” se faz com o acréscimo de um “s” (degrau – degraus), enquanto o de palavras terminadas em “l” se faz com “-is” (para as oxítonas: jornal – jornais, barril – barris) e com “-eis” (para as paroxítonas: hábil – hábeis, móvel – móveis).

Tudo indica que o redator tenha associado o plural das terminadas em “l” (jornal, manancial, normal) à forma “sarau”, como se fosse “saral” (forma inexistente). A palavra “sarais” existe, mas é uma forma do verbo “sarar” (vós sarais).

Hoje, é comum ouvirmos dizer que esse tipo de erro não é importante porque o contexto esclarece o sentido pretendido. De fato, não deixamos de entender a mensagem por causa da grafia errada, mas perdemos o rigor. O estudo da língua, desde a ortografia até as questões mais complexas, estimula nossa capacidade de abstração e de compreensão do universo.

Vamos às correções:

Nesse período emagreceu 15 quilos, precisou usar fraldas, ficou impossibilitado de se locomover e de trabalhar […].

“Se Barroso está mesmo bem-intencionado e quer prestar um serviço à República – e não há razões para duvidar disso –, melhor faria se trocasse os saraus eivados de conflitos de interesses pelo silêncio institucional e a afetação iluminista pelo respeito aos limites do cargo.”

O leitor atento notou que, no segundo fragmento, alteramos “conflitos de interesse” para “conflitos de interesses“. No singular, a expressão é “conflito de interesses”, ou seja, existem em determinada situação “interesses conflitantes” (os interesses é que estão em conflito). Em resumo, o que pode estar no singular ou no plural é a palavra “conflito”;”interesses” fica sempre no plural.

A vírgula antes do “e” também não tinha função, portanto foi eliminada: trocar os saraus pelo silêncio e a afetação pelo respeito. O mesmo verbo (“trocar”) tem dois pares de complementos organizados em paralelismo pela conjunção “e” (trocar X por Y e A por B), sem nenhuma necessidade de vírgula.

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‘Intender’ e ‘entender’

BÁSICO E IMPORTANTE. Ortografia é um tema que podemos considerar básico, já que é objeto dos primeiros anos escolares. Mesmo aprendendo logo cedo as principais regras da convenção ortográfica, algumas questões persistem e erros aparecem até mesmo em textos da imprensa. É claro que não me refiro aqui a erros de digitação, que são fruto de lapso mecânico.

Hoje vamos examinar um caso em que o jornalista reproduz a fala de uma pessoa. Vejamos:

“Aqui, vemos que a parceria do governo federal com os municípios é importantíssima. A gente não consegue fazer tudo lá de cima. A gente precisa que os municípios sejam parceiros, que os prefeitos intendam a importância da saúde da mulher”, afirmou. “Sou uma mulher na menopausa.”

É comum entre os falantes de determinadas regiões a pronúncia como “i” do “e” inicial da palavra. Pronuncie em voz alta as seguintes construções: “conseguir um emprego”, “pegar o carro emprestado”, “ambiente empesteado” e observe como o “e” é pronunciado. A pronúncia é livre de convenções, portanto não há nenhum problema em falar o “e” como se fosse um “i”, mas a escrita é diferente. No português, a ortografia segue tanto o critério fonético como o etimológico, portanto nem sempre se escreve exatamente como se fala.

O verbo “intender”, embora pouco usado, existe e tem o sentido de “efetuar a administração de” – dele derivam termos como “intendente”, que, no passado, era o equivalente ao atual “prefeito”, e “superintendente”, que é um supervisor de empresa ou repartição.

Esse é um sentido mais recente de “intender”, que, na origem, tem significado semelhante ao de “intensificar” (por exemplo: Como o vento se intendeu, começaram a quebrar-se as velas). 

Não parece, porém, que o erro na grafia de “entender” se tenha devido a alguma confusão com o termo “intender”, já que este é realmente pouco usado nos dois sentidos apresentados. Mais parece ter sido a aplicação do critério fonético na grafia, ou seja, a pessoa escreveu como fala e ouve regularmente.

A escolha causou certa estranheza, uma vez que “entender” é uma palavra de uso muito frequente. Vamos, então, à correção do fragmento:

A gente precisa que os municípios sejam parceiros, que os prefeitos entendam a importância da saúde da mulher

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Infringir a lei, infligir um castigo

SEMÂNTICA. “Infringir” e “infligir” são palavras parecidas quanto à grafia e à pronúncia, mas muito diferentes quanto ao significado. A língua portuguesa tem uma boa quantidade de pares desse tipo, que são chamados de “parônimos”. Não é difícil que, vez ou outra, um termo apareça no lugar do outro. Vejamos um caso recente, publicado em um importante site de notícias:

“O artigo 21 aponta que os profissionais não podem deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infligir a legislação pertinente.”

Estamos diante de uma questão semântica. “Infligir” tem como base o verbo latino “fligo”, que quer dizer “bater”. Na mesma família linguística, estão “afligir”, “aflito”, “conflito”, cada qual com suas nuances. “Afligir” carrega a ideia de abater física e moralmente, “infligir” é bater contra; de “confligo” (lat.), que significa “combater”, veio “conflictus”, ou “conflito” (choque).

Assim, embora pertençam à mesma família e tenham traços semânticos comuns, esses termos têm também significativas diferenças. Enquanto “afligir” é hoje usado no sentido de abater moralmente, “infligir” é usado no sentido castigar ou punir tanto fisicamente como de outras formas. “Conflito”, por sua vez, remete a choque entre dois elementos, um conflito entre manifestantes e a polícia, um conflito entre ideias divergentes, um conflito interior, em que uma parte de nós briga com outra.

“Infringir”, por sua vez, vem do verbo latino “frango”, que significa “quebrar”; da mesma família, são termos como “fratura”, “frágil” e, naturalmente, “infração”, entre outros. “Infringir” uma regra é, assim, “quebrar uma regra” ou cometer uma infração.

(Vale observar que a ave, originariamente chamada de “frângão”, deriva da forma “frángano” e não se relaciona ao verbo latino. Estudiosos sugerem hipóteses, mas não se sabe ao certo a etimologia de “frango” no sentido de ave.)

De volta ao fragmento selecionado, podemos perceber que o ideal seria ter usado o verbo “infringir”. Assim:

“O artigo 21 aponta que os profissionais não podem deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.”

Do ponto de vista da grafia, observe que a diferença entre os dois termos não está apenas no par r/l (fri/fli). Em “infringir”, temos o segundo “n”; em “infligir”, só o primeiro.

Homicídio, feminicídio, genocídio

GRAMATICAIS. SEMÂNTICA. As três palavras acima têm a mesma terminação, portanto é muito provável que haja algo de comum entre elas, certo? O elemento “-cídio” indica a ação de quem mata ou o resultado dessa ação.

“Homicídio” é, portanto, o ato de provocar a destruição da vida de um homem, entendido aqui como ser humano, não apenas como pessoa do sexo masculino. Quando dizemos, por exemplo, que “todo homem é mortal”, estamos falando de toda a humanidade, de todos os seres humanos.

O termo “feminicídio” é recente na língua portuguesa (datado de 2012, segundo o dicionário Houaiss) e, embora seja composto de elementos latinos, tem origem na língua inglesa, que, mesmo não sendo oriunda do latim, deste recebeu influência.

A palavra denomina os crimes praticados contra mulheres por discriminação de gênero, entre os quais se incluem aqueles ocorridos como consequência de violência doméstica. O reconhecimento de que mulheres são agredidas sistematicamente por seus próprios companheiros ou namorados, muitas vezes chegando a perder a vida, trouxe a nova tipificação criminal e com ela a nova palavra.

No Direito, o feminicídio é definido como uma circunstância qualificadora do crime de homicídio, que figura, no Brasil, no rol dos crimes hediondos. Nem todo assassinato de mulher é feminicídio. Para que assim seja considerado, é necessário determinar as circunstâncias e motivações do crime.

Na língua portuguesa, já existia o termo “uxoricídio”, que denomina o assassínio de uma mulher por seu marido (“uxori-“, em latim, quer dizer “esposa”), mas “feminicídio” , além de chegar pelo inglês por influência de autores norte-americanos que trataram do tema, é mais abrangente, incluindo qualquer mulher cujo assassinato se dê por discriminação de gênero, não sendo o ato necessariamente perpetrado pelo seu marido.

“Genocídio”, por sua vez, é o termo que denomina o extermínio deliberado, que pode ser total ou parcial, de uma comunidade, grupo étnico ou religioso. Essa palavra surgiu para nomear a matança de judeus na Segunda Guerra Mundial pelo regime nazista de Adolf Hitler.

Termos novos (ou neologismos) surgem para nomear novos objetos, fatos ou conceitos. Às vezes, os fatos não são propriamente novos, como é o caso do extermínio dos indígenas no Brasil no período da colonização e da violência específica contra a mulher.

Ocorre, porém, que os historiadores reinterpretam os fatos e, assim, lançam mão de novos conceitos para explicá-los. A palavra “genocídio”, que surgiu em 1945, no âmbito da Segunda Guerra Mundial, hoje é usada também para aludir a vários episódios da história, inclusive a destruição dos povos originários do Brasil, cujos remanescentes ainda lutam pela sobrevivência em condições adversas.

A violência doméstica, infelizmente, não é tão recente quanto a palavra “feminicídio” nem quanto a lei que pune esse tipo de crime, a qual data de 2015 (governo Dilma Rousseff). Os fatos eram, no entanto, invisibilizados, não noticiados. A palavra surge quando a luta das mulheres atinge certo nível de visibilidade na sociedade, e seu uso reforça a existência do problema e a necessidade de enfrentá-lo coletivamente.

Nosso objetivo aqui é tratar das palavras, mas, como se vê, é impossível falar delas sem tratar daquilo que nomeiam. Voltemos, pois, a alguns aspectos formais que podem ser úteis para a compreensão do tema.

A pessoa que comete um homicídio é chamada de “homicida”. Note que o sufixo “-cida”, em si, significa “aquele (ou aquilo) que mata”. Pensando nisso, fica fácil entender o significado de “formicida” ou de “inseticida”, certo?

Existe uma correlação entre os sufixos “-cídio” (ação de matar) e “-cida” (agente), estando o primeiro ligado aos substantivos abstratos que nomeiam ações (homicídio, feminicídio, genocídio, infanticídio, regicídio, parricídio, matricídio, filicídio, suicídio) e o segundo ao elemento que pratica essas ações (homicida, feminicida, genocida, infanticida, regicida, parricida, matricida, filicida, suicida, formicida, inseticida).

Se “formicida” (o que mata formigas) e “inseticida” (o que mata insetos) são tipos de veneno, os demais, referentes a pessoas, estão associados a algum tipo de crime: o infanticida é aquele que mata crianças, o regicida mata o rei, o parricida mata o pai, o matricida mata a mãe, o filicida mata o filho; o suicida, como sabemos, mata a si próprio (“sui”, em latim, quer dizer o mesmo que “se”, “si mesmo”).

Conhecendo o significado de sufixos, como esses que aqui abordamos, é possível criar novas palavras e compreender de imediato aquelas que vão aparecendo. O termo “generocídio” (do inglês “gendercide”), que ainda não está nos dicionários de língua portuguesa, já vem sendo usado na internet, desta vez para denominar o assassinato de pessoas por seu gênero (nesse caso, não só homens e mulheres, mas pessoas transgênero ou não binárias).

Todos os termos terminados em “-cídio” são masculinos (o genocídio, o feminicídio, o suicídio); os terminados em “-cida”, quando referentes a pessoas, podem ser masculinos ou femininos (o homicida/ a homicida) e, quando referentes a agentes não humanos, ficam no gênero masculino (o inseticida).

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Próclise é colocação mais comum no Brasil

GRAMATICAIS. O título acima expressa uma espécie de consenso nacional. No português do Brasil, há predileção pelo uso do pronome átono antes do verbo, independentemente da situação, o que seria uma das marcas que distinguem a sintaxe brasileira da portuguesa.

Na linguagem espontânea, isso parece de fato ser verdade. No registro escrito, no entanto, a ênclise continua sendo usada com frequência, embora nem sempre de acordo com a tradição. O exemplo a seguir, extraído de um texto jornalístico, mostra um desses casos, que não são poucos (basta observar com atenção as páginas dos jornais). Vejamos:

“Em resposta a um artigo publicado na revista The Economist, o chanceler Mauro Vieira escreveu uma carta elogiando Lula. Nela afirmou que a ‘autoridade moral’ do presidente é ‘indiscutível’. Indiscutível não é, tanto que a revista discutiu-a.”

A prática de usuários escolarizados do idioma, como os jornalistas e os intelectuais, mostra, na verdade, um quadro bastante irregular. Se, na fala, a próclise de fato prevalece, na escrita, as coisas mudam um pouco de figura. O excerto acima é um dos muitos em que um autor escolhe a ênclise numa situação caracteristicamente de próclise. Dito de outra forma, a tradição luso-brasileira jamais usou ênclise na oração subordinada iniciada pela conjunção (“tanto que”), uma situação típica de próclise, como se pode aferir em qualquer gramática.

Ora, se nós, brasileiros, somos adeptos incondicionais da próclise, a ponto de a usarmos até no início dos períodos (pelo menos, no registro informal), por que, em uma situação típica de próclise, optaríamos pela ênclise?

É possível aventar a hipótese de que a ênclise, por ser mais rara entre nós, soe mais erudita, o que levaria à sua escolha em certos contextos. Essa é uma possibilidade, que, na verdade, mostra desconhecimento das regras – e isso não surpreende, pois as escolas têm dado pouca atenção a esse tópico. Na prática, porém, voltando ao período acima, percebemos como a leitura da frase fica postiça com a ênclise. Experimente ler o período em voz alta com a colocação pronominal correta:

Em resposta a um artigo publicado na revista The Economist, o chanceler Mauro Vieira escreveu uma carta elogiando Lula. Nela afirmou que a “autoridade moral” do presidente é “indiscutível”. Indiscutível não é, tanto que a revista a discutiu.”

Muito mais natural – e correto, à luz da norma padrão da língua portuguesa.

A dica de hoje para os que se orientam pela norma padrão é manter a próclise nas orações subordinadas iniciadas por uma conjunção. Alguns exemplos: Embora se sentisse triste, saiu com os amigos; Como lhe dissera antes, não pretendia continuar no curso; Se me ajudar agora, será recompensado. As conjunções “embora”, “como” e “se” são fatores de próclise.

Voltaremos a este tema mais vezes.